sexta-feira, 11 de maio de 2018

SOBRE OS POETAS


1

Há poetas que constroem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amassam
— lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.

2

Tal a «Cadeia de Santo Onofre:
Copie o texto: envie a cinco amigos...»
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.

3

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
tênue tinta azul no papel claro ...

Os poetas têm
como os peles-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.

4

Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião noturno
arenga; executa o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.

Egito Gonçalves em Os Arquivos do Silêncio

Legenda: pintura de Van Gogh

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