segunda-feira, 7 de maio de 2018

CAMPONESES QUE SÓ SE TINHAM VISTO DA JANELA DO COMBOIO


Creio ter contribuído alguma coisa para dotar o neo-realismo de uma nova dimensão, outra lingua­gem, na poesia, na ficção, na teoria (a ordem é arbitrária), como os pesquisadores, se os houver e forem capazes de, talvez confirmem. Que não es­queçam as datas por favor.
 O problema principal, para mim, seria nunca escrever sobre camponeses que só se tinham visto da janela do comboio, de acordo com o que o Na­mora dissera na nota introdutória do seu livro do «Novo Cancioneiro»: «Este é um livro da Terra: da Terra que não foi vista da janela do comboio». Nunca escrever, portanto, sobre camponeses mol­dados nos de romances de alheias literaturas, mas só sobre gente e meios que o autor directamente conhecesse. E tão de dentro quanto possível. Nu­ma entrevista posterior (a tal dada a O Primeiro de Janeiro), tornaria isto bem claro. Era muito natural que, na relação camponeses/operários, os campone­ses fossem os preferidos e bem se entenderá por­quê. A censura tinha os olhos muito mais abertos para o que se referisse àqueles. Os problemas que os operários suscitavam tornavam-nos mais difíceis (perigosos) de tratar. A explosão no campo (a ve­lha pobreza do camponês) era um tema sabido e de algum modo consentido, tinha uma longa tradição que ajudava a ocultar os novos propósitos com que o abordavam, enquanto a exploração na cidade, sobretudo nas fábricas, era inevitavelmente explosiva.
 Mas não havia só camponeses e operários. Ha­via a sociedade inteira: tudo dependia do «ponto de vista» (ver outra vez a citada entrevista). Havia, nomeadamente, a pequena-burguesia a que todos pertencíamos, que conhecíamos de dentro e que tinha (teria), quanto a mim, um papel importante na situação política portuguesa. Não inventada, mas observada e pessoalmente vivida, a pequena-burguesia permitiria trazer a nossa ficção para a cidade. E foi o que fiz em quase todo O Dia Cin­zento. Por isso terá sido tão mal compreendido quando apareceu. Mas a actividade clandestina lá está, e na cidade. Bastou o pequeno truque de dar nomes estrangeiros às personagens (na 1ª edição), simulando, para a censura, tratar-se duma história da Resistência francesa. As pessoas, contudo, as ruas, os recintos descritos no «Nevoeiro na cida­de» são de Lisboa. A casa da personagem principal é na Calçada dos Cavaleiros, o café é em frente da estação do Rossio. Aí os via, escrevendo.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda; desenho de Lima de Freitas

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