sexta-feira, 20 de abril de 2018

TENHO O LIVRO À MINHA FRENTE


Chandler, Lettres.
Tenho o livro à minha frente. Releio, às vezes, uma ou outra carta. São cartas serenas, inquietas, tímidas, polémicas, orvalhadas de pudor. E de magia. A magia da escrita que ele confessa perseguir. Chandler fala dele, dos outros, de gatos, do seu trabalho. A arquitectura, a atmosfera, o tricot do romance policial. Philip Marlowe aberto de alto abaixo, como um boneco, exposto, depositado, transmitido. Mais um adjectivo: quotidiano. Saem das suas entranhas as vítimas de Sammy Glick, Sammy Glick ele próprio, seus compostos e derivados, a maratona incansável do sucesso, a Black Mask toda inteirinha, dinâmica, estereotipada, esquizofrénica, consumível, e que em Chandler atinge, através dos seus filtros verbais, aquele estádio superior que é o exercício equilibrado de uma paixão: o plano sólido da história, o encaixe de situações desencaixadas, o relance certeiro, o descritivo absurdamente minuciosos, o diálogo coruscante, os factos, a névoa dos factos, a rarefacção do conjunto, a elipse, a tecla silábica, the-la-dy-in-the-la-ke, a estúpida brutalidade, a humidade do beijo, a bala na têmpora, o enlace das aquisições, o desenlace, essa quase geométrica flor de papel pintada a sangue que é cada um dos seus livros.

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