quarta-feira, 11 de abril de 2018

O NADA É VERDADE QUE EXISTE


Ricardo Reis regressa ao hotel. Não faltam por essa cidade lugares onde a festa continue, com luzes, vinho espumoso, ou verdadeiro champanhe, e animação delirante, como os jornais não se esquecem de escrever, mulheres fáceis ou não tanto, directas e demonstrativas umas, outras que não dispensam certos ritos de aproximação, porém este homem não é um destemido experimentador de aventuras, conhece-as de ouvir contar, se ousou alguma vez, foi entrada por saída. Um grupo que passa em cantoria desafinada grita-lhe, Boas festas, ó velhinho, e ele responde com um gesto, a mão no ar, falar para quê, já lá vão adiante, tão mais novos do que eu. Pisa o lixo das ruas, ladeia os caixotes virados, debaixo dos pés rangem vidros partidos, só faltou que tivessem atirado também os velhos pelas janelas com o manequim, não é assim tão grande a diferença, a partir de certa idade nem nos governa a cabeça nem as pernas sabem aonde hão-de levar-nos, no fim somos como as criancinhas, inermes, mas a mãe está morta, não podemos voltar a ela, ao princípio, àquele nada que esteve antes do princípio, o nada é verdade que existe, é o antes, não é depois de mortos que entramos no nada, do nada, sim, viemos, foi pelo não ser que começámos, e mortos, quando o estivermos, seremos dispersos, sem consciência, mas existindo. Todos tivemos pai e mãe, mas somos filhos do acaso e da necessidade, seja o que for que esta frase signifique, pensou-a Ricardo Reis, ele que a explique.

José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis

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