quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

OLHAR AS CAPAS


O Anacronista

Manuel António Pina
Colecção Ficções nº 43
Edições Afrontamento, Porto, 1994

O que foi feito dos meus amigos e das coisas belas e desmesuradas por que todos nós perdemos e ganhámos a juventude? Olho em volta e resigno-me: os meus amigos cansaram-se e jazem agora em empregos rotineiros à espera da trombose ou do enfarte. Alguns passaram-se com armas e bagagens (e, naturalmente, proveito) para o lado do inimigo. Os melhores (mas que sei eu?) engordaram – para dizer a verdade, todos engordámos... – e tornaram-se cépticos e amargos carregando a nossa memória comum como um pecado envergonhado. Muitos morreram em guerras sem sentido, ou tão só de tédio, de longo e insuportável tédio. Outros partiram para improváveis distantes lugares; um enlouqueceu (e esse foi, se calhar, o que, imóvel e cegamente, partiu para mais longe).
Aquilo por que, há 20 anos, estávamos dispostos a perder tudo o que tínhamos (que não era, aliás, grande coisa: tempo, paciência, a breve vida), desmoronou-se mesmo antes de termos levantado as primeiras inseguras paredes. Atrás de nós veio pesadamente, a perigosíssima estirpe da chamada gente prática (laboriosas formigas que, enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de todas as policias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida), e reduziu a utopia a dimensões razoáveis e geriveis. (Façamos-lhe, no entanto, justiça: talvez, quem sabe?, sem eles cedo a despensa se tivesse esgotado e a festa tivesse acabado mal e numa tremenda ressaca...)

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