terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

OLHAR AS CAPAS

Viagens

Mário Castrim
Capa: pormenor de um dos Desenhos da Prisão de Álvaro Cunhal
Edição da célula dos Trabalhadores Gráficos da Renascença Gráfica, Lisboa 1977

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.

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