sábado, 13 de janeiro de 2018

OLHAR AS CAPAS


Montedemo

Hélia Correia
Capa: Ana Leão
Colecção Imagem do Corpo nº 7
Ulmeiro, Lisboa, Novembro de 1983

Mais tarde alguns lembraram que tudo começou naquele domingo seco em que a terra tremeu. Coisa sem importância, num instante sentida noutro instante acalmada, nem mesmo Irene a tonta pensou que lhe servisse de mote em pregação. Um tremor ligeirinho no afrouxar da noite, hora de moribundos e de bêbados, todos pensando que se balouçavam em líquidos maternos, quentes e protectores. Os outros, muito poucos, que estavam acordados: mulheres suspensas do tossir das crias, velhos apunhalados por insónias, tinham ficado na dúvida se fora realmente o chão que se ondeara numa sacudidela ou se tontura provocada por um sangue de repente engrossado ao de cima dos olhos. O padre chegou mesmo a confessar que achara muito estranho terem tocado os sinos apenas com aquele abanãozico. Mas a manhã nasceu radiosa e gelada, e o próprio mar parecia tão sem peso, tão dançarino e limpo de pecado, que o assunto passou ao esquecimento. 

Sem comentários: